Falar de manga e anime é falar de certos gêneros que moldaram essa cultura de forma única, a ponto de serem vistos como representativos da indústria: séries de batalha como Dragon Ball, One Piece e Naruto definem uma parte grande da percepção popular. Entretanto não são tudo, o conceito de bishoujo e bishounen, garotas e garotos bonitos, são também recorrentes nesse imaginário coletivo — jogos mobile asiáticos seguem essa linha e são hoje algumas das séries mais populares do planeta, por exemplo. Para entender um pouco mais de tudo isso, precisamos falar das rabukome (ラブコメ), as comédias românticas que aqui chamarei de romcom, por questão de entendimento comum entre seguidores de anime e manga.
O que seria uma comédia romântica? É fácil de entender pelo nome, mas também por exemplos que já vem à cabeça das pessoas: filmes como Uma Linda Mulher, novelas latinas, até peças teatrais de Shakespeare. O gênero é tão antigo quanto a dramaturgia, é impossível de definir quando nasceu. São histórias românticas de tom mais leve e focadas nas desventuras em busca do amor; é universal e será presente em qualquer cultura.
Mas cada lugar e cada mídia tem suas próprias diferenças. O que define as romcom num contexto de anime e manga? Quando o gênero nasceu?
- Artigo Escrito por Lucca
Voltemos à concepção da indústria de manga então: décadas de 1950 e 1960. Quadrinhos japoneses já existiam antes, mas a construção de uma indústria formal com apoio de editoras e publicação em massa começa no pós-Segunda Guerra. A história é conhecida por muitos, mas é basicamente com o estabelecimento de artistas como Osamu Tezuka com Tetsuwan Atom (Astro Boy no Brasil) que manga se tornou uma mídia de massa.
Dessas primeiras obras nasceram as primeiras subdivisões, uma de demografia e não de gênero: shonen, para garotos, e shojo, para garotas. Assim então as editoras promoviam suas obras e revistas, com as de shonen focando em gêneros como comédia, esporte e séries com mais ação (não o battle shonen moderno ainda); enquanto as publicações shojo também tinham variedade temática e de gênero, representando uma conquista de espaço das mulheres japonesas, mas com o adendo de também terem obras de romance, um gênero visto como desinteressante ao público masculino de então.
Assim se deram as primeiras décadas da indústria de mangá, mas essas estruturas logo foram abaladas pela primeira geração que cresceu com mangá e anime, agora entrando na indústria. Enquanto as séries de esporte de combate (boxe, karate, etc) passavam por uma transformação na Shonen Jump com a adição de superpoderes nas lutas em Ring ni Kakero (1977), assim dando o primeiro passo para o estabelecimento do shonen de batalha como entendemos, outro gênero estava para se estabelecer: romcom.
Nas páginas da Weekly Shonen Sunday de 1978 estreou uma nova série por uma mangaka novata: Urusei Yatsura por Rumiko Takahashi. A história de um garoto japonês comum, Ataru, que numa confusão acaba apaixonando uma princesa alien, Lum, e vive desventuras românticas enquanto tenta se reaproximar de Shinobu, a garota pelo qual era apaixonado. É um triângulo amoroso com situações bizarras graças aos elementos de ficção científica, comédia pastelão e personagens que falhos, e por isso mais acessíveis que os típicos heróis perfeito de outras tantas séries da época. Elementos comuns em romcom até hoje.
Então quer dizer que Urusei Yatsura criou o gênero? Não dá para falar isso. Obras shojo como Okusama wa 18sai (1960) podem ser consideradas romcom e é preciso reconhecer essa origem shojo, até mesmo Tonde Couple da Shonen Magazine saiu um pouco antes no mesmo ano de 1978 como uma romcom shonen. Mas a grande revolução do trabalho de Rumiko Takahashi foi trazer uma perspectiva de alguém que lia shojo e shonen para a obra — Lum, a garota extraterrestre, foi considerada uma personagem de beleza atípica e fascinou os leitores japoneses, o traço de Rumiko era lindo. Ao mesmo tempo a forma que existe na narrativa em relação a Ataru, é como se fosse o conceito do príncipe que acaba em amor com a simples protagonista do mangá shojo, é um conceito que atiçava a fantasia dos jovens leitores, que se viam na figura de Ataru. Enquanto isso o humor pastelão era mais próximo às comédias que saiam em revistas shonen, uma mistura que deu certo.
Falando de rabukome como um gênero usado para marketing, dá para apontar especificamente quando começou a ser usado. Justamente ali por volta de 1978 e 1981, Urusei Yatsura e obras de Mitsuru Adachi, como Miyuki (1980) e Touch (1981), já eram promovidas com o termo rabukome pelos editores da Weekly Shonen Sunday.
Takahashi e Adachi se tornaram os dois grandes nomes da Sunday, uma das três grandes revistas shonen. Enquanto Takahashi focava em obras com conceitos de sci-fi e uma comédia eletrizante que mergulhava leitores nessas fantasias, Adachi escrevia romances mais realistas, com relações que pareciam mais “alcançáveis” ao leitor, geralmente envolvendo esportes e temas de crescimento da infância para a adolescência. Os dois eram rivais amigáveis que se alimentavam e assim influenciavam inúmeros outros futuros criadores que viriam a firmar de vez a cultura otaku.
A romcom assim se tornou um dos gêneros chaves da indústria e das revistas shonen. E mais importante, foi uma das maiores bases para a criação da cultura otaku que emergia como uma indústria própria, com convenções especificamente dedicadas a anime e mangá como a Comic Market (Comiket), assim se separando das convenções de sci-fi generalizadas existentes até então. Também é visto como parte de uma quebra do modelo tradicional de “shonen e shojo”, já que é vindo de uma geração que lia obras das duas demografias e isso era refletido em seus trabalhos.
Claro, o gênero sozinho não moldou o que foi ser visto como otaku, mas vários conceitos como bishoujo (belas heroínas) ou garotas de outro mundo se intensificaram após a criação de Lum — ela é vista como símbolo desses conceitos. Personagens icônicas e populares como Rei Ayanami de Evangelion e Saber de Fate/Stay Night tem em Lum sua raíz, mesmo fora da romcom essa influência é vista.
Takahashi publicou mais obras como Maison Ikkoku (1980) e Ranma 1/2 (1987) que firmaram ainda mais seu estilo específico de romcom, enquanto mais autores foram criando mais obras populares no gênero e que firmavam ainda mais sua identidade própria ao longo do anos. Alguns exemplos são Masakazu Katsura, de Video Girl Ai, DNA² e I’s na Shonen Jump durante os anos 1990 e Ken Akamatsu com obras como Love Hina pegando o final da mesma década até os 2000.
Dito isso, é mais fácil de definir o que faz a rabukome japonesa e suas características principais. Isso não são regras definidas e até classificações de gênero são contestadas às vezes, mas ainda assim esses elementos são os mais comuns, embora não sempre todos obrigatórios propriamente para a classificação: são primariamente sobre jovens, sobre amor juvenil; a história geralmente é focada ou começa antes de relações serem estabelecidas, são mais sobre a jornada até o amor que sobre o relacionamento em si; precisa ter comédia obviamente, muitas vezes vindo de confusões e problemas de comunicação entre os personagens. O gênero não é exclusivo de nenhuma demografia, podendo ser visto em qualquer revista.
Algumas vezes leitores ficam frustrados com desenvolvimentos lentos em romcom, mas é basicamente uma expectativa do gênero, o que pode até causar uma certa diferença entre as recepções de obras entre o público japonês e alguns leitores de fora.
O gênero obviamente não se limitou ao mangá. Várias adaptações em anime foram sucessos de massa, como o das próprias obras de Rumiko Takahashi, e até outras divisões e subculturas nasceram dali. Jogos simuladores de romance basicamente usaram os conceitos do gênero para criar videogames focados em romance, colocando os jogadores no papel de um típico protagonista de romcom, com várias heroínas bishoujo. Isso em torno alimentou a indústria de mangá que cada vez mais criava obras harém, aquelas com várias garotas interessadas no personagem principal, criando uma expectativa de mistério sobre quem alcançaria o romance — basicamente algo que já existia lá detrás com Takahashi e Adachi, mas que acabou se tornando um próprio subgênero.
Ao virar o século as light novels ficaram cada vez mais populares com romcoms de sucesso como Toradora ou com a mistura de romcom, harém e séries de batalha, criando franquias populares como Date a Live. O fim da hegemonia dos simuladores de romance também acabou levando à popularização dos gacha game, que adaptaram o gênero para jogos que agora podiam ser escritos continuamente com dezenas de bishoujo e bishounen diferentes (sim, existem sucessos grandes focados tanto em personagens homens como mulheres). Dá para seguir a linha de todas essas subculturas lá de trás.
Voltando ao mangá agora, o gênero continua mais vivo que nunca e é realmente um dos pilares da indústria. A Shonen Magazine se firma como a grande revista de romcom, com inúmeros sucessos como Gotoubun no Hanayome, Kanojo Okarishimasu, Kakkou no Iinazuke, etc. Citei gachas antes e esses tiveram influência clara nas obras que citei, agora cada vez mais focadas em dar momentos chave para cada uma das heroínas, cada um tem seus próprios fãs e essas séries são promovidas por elas. É impossível caminhar por uma loja no bairro otaku de Akihabara sem ver inúmeros produtos das cinco irmãs de Gotoubun, a imersão do leitor permite que mesmo que a obra termine de uma forma, ele ainda pode ter sua favorita própria.
Comédias românticas podem ser um gênero simples de entender e muitas de suas obras mais populares podem não ser vistas de maneira mais profunda, mas a influência do gênero é inegável. Mangá, anime, games, light novel, gacha. Conceitos como moe, bishoujo, a cultura otaku em si. Existem da forma que são porque um dia alguns autores viram suas obras além de uma subdivisão demográfica e deixaram sua imaginação e influências guiarem e inspirarem seus leitores. Um dia uma garota extraterrestre do planeta Oni se apaixonou por um mero garoto humano, o resto é história.